domingo, 29 de setembro de 2013

Sobre o extrativista redescoberto na década de 1980



* Ecio Rodrigues
Tendo sido decretada, pelo Estado brasileiro, a extinção do extrativismo no decorrer da década de 1970, um novo e intenso processo de expansão da agropecuária (mais pecuária que agro) foi levado a efeito na Amazônia, sob elevados custos (financeiros, sociais e ecológicos) para a sociedade brasileira.
Todavia, a despeito das convicções estatais quanto ao fim de sua atividade, o persistente produtor extrativista permanecia no interior da floresta, extraindo um leque variado de produtos florestais, inclusive a “extinta” borracha.     
A presença dos extrativistas remanescentes foi sendo percebida, à medida que a construção das rodovias federais disponibilizava extensas porções territoriais para a instalação da pecuária. Com dois eixos bem definidos, o primeiro formado pelo corredor da Transamazônica, e o segundo, pelo da BR 364 (ligando Cuiabá, no Mato Grosso, a Rio Branco, no Acre), as vias de escoamento começaram a ser implantadas, a fim de beneficiar uma produção agropecuária que se pretendia expressiva.
         Além da construção das rodovias, a expansão da agropecuária requeria mudança na titularidade das terras – de forma que, sob segurança fundiária e jurídica, os novos proprietários, sempre incentivados pelo planejamento estatal, pudessem converter a floresta em pastos e consolidar o processo de ocupação.
         No modo extrativista de produção, a propriedade e a posse dos antigos seringais e das colocações, respectivamente, efetivavam-se de modo bastante peculiar. Enquanto os seringalistas detinham a propriedade dos seringais, os seringueiros, por sua vez, eram considerados posseiros em suas colocações.
O seringalista, proprietário do seringal, assentava um grande número de seringueiros, que se responsabilizavam pelo corte da seringa e pela produção da borracha que seria comercializada pelo seringalista – uma relação entre capital e trabalho que Euclides da Cunha considerou a mais profunda anomalia capitalista, vez que o seringueiro “trabalhava para escravizar-se”.
Enquanto o seringalista era indenizado pela sua propriedade – que a partir da abertura das rodovias começou a passar para as mãos dos pecuaristas –, o seringueiro continuava posseiro de sua colocação, dispondo de direitos precários sobre a terra. Enquanto, no caso do seringalista, era-lhe indiferente a posse do seringueiro, no caso do pecuarista essa posse atrapalhava a instalação de pastos em grandes áreas continuas, como requerido pelo padrão de produção da pecuária bovina.
Durante a década de 1980, contudo, o processo de redemocratização do país, adjudicando ao seringueiro oportunidade de contato com a população urbana, abriu-lhe espaço para reivindicar seu direito de propriedade sobre as terras requeridas pela pecuária.
O conflito foi inevitável. Os extrativistas, reunidos no que se chamou de Movimento dos Seringueiros, iniciaram os “empates”, um tipo de barreira humana, pela qual os manifestantes, reunidos em fileiras, tentavam impedir, apenas com sua presença, o avanço das frentes de desmatamento sobre a floresta – fosse para a instalação da pecuária (o que motivava a maioria dos empates), fosse para a abertura de rodovias ou de ramais de acesso às fazendas de criação de gado.
A natureza pacífica da resistência não impediu o assassinato de trabalhadores rurais, entre os quais duas destacadas lideranças do movimento. Wilson Pinheiro e Chico Mendes tornaram-se mártires da luta em favor do reconhecimento, pelas instituições do Estado brasileiro, do direito de propriedade dos seringueiros sobre suas colocações.
Os extrativistas, que ganharam apoio da academia, dos institutos de pesquisas, das organizações da sociedade civil, não imaginavam que chegariam à década seguinte, a década de 1990, como expoentes de um modelo de ocupação produtiva que garantiria a manutenção do ecossistema florestal na Amazônia.
E a conservação da maior floresta tropical úmida do planeta seria convertida, por sua vez, numa das mais significativas preocupações da humanidade.

* Professor da Universidade Federal do Acre (Ufac), Engenheiro Florestal, Especialista em Manejo Florestal e Mestre em Economia e Política Florestal pela Universidade Federal do Paraná (UFPR) e Doutor em Desenvolvimento Sustentável pela Universidade de Brasília (UnB).

domingo, 22 de setembro de 2013

Sobre o extrativista inexistente na década de 1970



* Ecio Rodrigues
Os extrativistas conseguiram vencer todos os ciclos econômicos florestais – das drogas do sertão (século XVI) até o mais recente ciclo econômico da madeira, iniciado no final do século passado – fazendo o inusitado: extraindo produtos da floresta.
Não obstante, depois que a seringueira foi domesticada nos seringais cultivados da Ásia, o extrativismo chegou a ser considerado uma atividade extinta.
Esse processo de domesticação, está claro, foi de fato um duro e quase definitivo golpe para a produção oriunda dos seringais nativos amazônicos. Assim, não é de espantar que, na década de 1970 – após uma breve recuperação da atividade em face do esforço produtivo impingido pela Segunda Guerra Mundial –, o fim do extrativismo, como modo de produção, e do produtor extrativista, como ator social de relevância, tenha sido institucionalmente decretado pelo Estado brasileiro.
À época, o país passava por seu Milagre Econômico. Diante de elevados índices de crescimento, a expansão da economia e da ocupação do território era questão de primazia para o Governo Militar. A organização da infraestrutura para a ocupação produtiva e social da Amazônia foi intensificada, sob altas taxas de investimento público, que não se repetiriam no decorrer da história econômica da região.
A prioridade, como não poderia ser diferente, era a pavimentação das rodovias principais (como a BR 230, conhecida por Transamazônica), a fim de que houvesse condições de escoamento de uma intensa produção agropecuária, proporcional ao que se pretendia da região que seria o celeiro do mundo.
Esperava-se que, por meio da expansão da fronteira agropecuária, sobretudo do investimento na criação de gado, fosse possível garantir uma ocupação produtiva permanente na Amazônia, afastando-se o fantasma da “cobiça internacional”, e assentando a região nos trilhos do progresso, mediante seu ingresso definitivo no sistema econômico nacional.
Evidentemente, o extrativismo não estava inserido nessa estratégia de ocupação. Primeiro, em face da quase inexistência dos produtos extrativos nas estatísticas oficiais; segundo, porque o modo extrativista de produção não promovia a tão esperada sedentarização do processo produtivo e da economia, na forma como se projetava em relação à pecuária.
Ocorre que os planejadores da ocupação do território nacional, que se debruçaram para entender a ocupação produtiva da Amazônia e estabelecer estratégias para a sua consolidação no curto prazo, acreditavam que o extrativismo era coisa do passado, e que o produtor extrativista teria abandonado a região, num refluxo migratório de volta ao Nordeste do país. Amparavam essas constatações no fato inquestionável de que o mercado de borracha apresentava tendência permanente de queda.
Era natural associar a presença do extrativista à produção de borracha, uma vez que a demografia no interior da floresta fora reduzida de forma expressiva, depois do agravamento da crise no mercado gomífero. Os poucos órgãos estatais que se aventuravam entrar na floresta para a prestação de algum serviço relatavam a presença de um número cada vez menor de produtores que seguiam extraindo látex.
O fato é que, ao delinear a ocupação de toda a Amazônia, apoiando-se em mapas e imagens de satélites ou de radar, em escalas superiores a 1:1.000.000, os planejadores simplesmente ignoraram a presença do extrativista na floresta.
Todavia, uma quantidade considerável de famílias continuava a extrair algum tipo de produto florestal, e a realizar sua comercialização por meio de um sistema de regatões, de marreteiros, e mesmo de alguns “patrões” que ainda persistiam.
Foi essa comercialização que garantiu a manutenção do extrativismo e, por conseguinte, a permanência da floresta.

* Professor da Universidade Federal do Acre (Ufac), Engenheiro Florestal, Especialista em Manejo Florestal e Mestre em Economia e Política Florestal pela Universidade Federal do Paraná (UFPR) e Doutor em Desenvolvimento Sustentável pela Universidade de Brasília (UnB).

domingo, 15 de setembro de 2013

Centro de Biotecnologia da Amazônia deveria ser prioridade




* Ecio Rodrigues
Erram os parlamentares que representam os interesses da Amazônia no Congresso quando tentam, sem sucesso, associar a Zona Franca de Manaus aos ideais de sustentabilidade preconizados para a região. No limite do equívoco e do desespero para defender esse modelo de ocupação, sustentam que há pouco desmatamento no Estado do Amazonas devido à industrialização trazida pela Zona Franca.
Pífio argumento, uma vez que não existe vínculo direto entre desmatamento e industrialização. Esse vínculo só poderia ser invocado se houvesse comprovação de que os lucros gerados no processo industrial são investidos em ativos fundiários – condição que levaria à ampliação da pecuária e, portanto, ao aumento do desmatamento.
Ou seja, desmatamento tem, na verdade, relação direta com a pecuária, e todas as ações que promovem essa atividade produtiva levam, inexoravelmente, à destruição da floresta para dar lugar ao capim. Os efeitos decorrentes da pecuária na Amazônia estão fartamente comprovados na literatura científica sobre o tema da ocupação produtiva da região.
Por outro lado, toda atividade produtiva que pressupõe o aproveitamento dos recursos florestais promove a manutenção e a conservação do ecossistema florestal. O caminho para alcançar algum tipo de sustentabilidade na Amazônia, incluindo-se aí as dimensões econômicas, ecológicas e sociais atribuídas ao termo, encontra-se no desenvolvimento de tecnologias e no estabelecimento de ambiente de negócios favorável ao manejo florestal de uso múltiplo da biodiversidade.
Foi justamente em face dessa constatação, que, na segunda metade da década de 1990, foi elaborada a Política Nacional Integrada para a Amazônia Legal, conhecida pelo acrônimo Pnial. A Pnial chamou a atenção para a importância de iniciativas levadas a cabo sob a tutela do Estado e financiamento público, direcionadas para a estruturação de modelos de ocupação ancorados na exploração (sob a tecnologia do manejo florestal, obviamente) do potencial da diversidade biológica existente na região.
Um grande esforço de política pública levou à concepção do Centro de Biotecnologia da Amazônia, CBA, um empreendimento que associaria a realização de pesquisas à formação de uma nova cadeia produtiva com base no aproveitamento florestal. A ideia era que o CBA realizasse intensa prospecção de princípios ativos, a serem empregados na farmacologia e na indústria de pigmentos e de tinturas, somente para ficar nos usos mais promissores.
Parecia então evidente que, atuando num meio que envolve muita informação e, mais que isso, inteligência de mercado – algo de difícil assimilação em vista da insipiência da indústria biotecnológica no país – o CBA não poderia operar sob as amarras e a costumeira ineficiência dos órgãos estatais, como acontece no caso das pesquisas desenvolvidas pelas universidades federais.
Para resolver o impasse – recorrente, diga-se, no que se refere à gestão dos órgãos estatais que devem atuar no mercado –, foi criada em 1997 a Bioamazônia, uma organização social que seria responsável pela gestão do CBA.
Mas, cometeu-se o erro capital de vincular-se a Bioamazônia ao Ministério do Meio Ambiente, famoso por sua incompetência em gerir processos produtivos, circunstância que se agravou no período posterior a 2003.
Bastou o questionamento dos termos de um acordo comercial celebrado entre a Bioamazônia e uma multinacional do ramo de biotecnologia, no final da década de 1990, para que fosse tudo por água abaixo. Não apenas o acordo foi cancelado, como foi deflagrado o processo de extinção da organização social. Conclusão: passados mais de 15 anos, o CBA se arrasta, com (aproximadamente) meros 30% de sua estrutura em funcionamento e sem um modelo de gestão definido.
A prioridade para os políticos que se preocupam com a sustentabilidade da Amazônia deveria ser o CBA, única alternativa para a dita “Zona Franca Verde”.

* Professor da Universidade Federal do Acre (Ufac), Engenheiro Florestal, Especialista em Manejo Florestal e Mestre em Economia e Política Florestal pela Universidade Federal do Paraná (UFPR) e Doutor em Desenvolvimento Sustentável pela Universidade de Brasília (UnB).

domingo, 8 de setembro de 2013

Por uma Política Florestal de segunda geração




* Ecio Rodrigues
O esforço para definição de políticas florestais para a Amazônia possui um importante divisor de águas: a conferência da ONU sobre desenvolvimento sustentável, conhecida por Rio 92.
Se, antes, o foco principal das políticas florestais era a garantia do suprimento de matéria-prima, sobretudo para a indústria do papel e da madeira, após 1992 a vinculação entre as formações florestais, plantadas ou nativas, e a sustentabilidade do desenvolvimento buscado pelas nações traria uma série de desafios a serem incorporados pela política florestal estatal.
Acontece que tanto a quantidade quanto a qualidade da água disponível no planeta são fatores que dependem da existência de formações florestais. Da mesma forma, a quantidade e a qualidade do ar que se respira também são variáveis vinculadas à existência ou não das florestas.
Por fim, mas não menos importante, a grande maioria das matérias-primas originárias de jazidas – isto é, de veios que um dia se esgotarão – como é o caso do petróleo, será substituída por matérias-primas provenientes das florestas.
A Amazônia, contudo, não tinha nenhuma experiência com o desenvolvimento e a promoção de políticas florestais. Afora algumas ações isoladas, direcionadas para solucionar problemas pontuais na produção de algum produto específico, como no caso da borracha, a definição de políticas florestais, na concepção técnica do termo, nunca fez parte das prioridades estatais para a Amazônia.
As dificuldades para a elaboração de políticas coerentes com a realidade da época (a década de 1990) eram imensas, e nenhum dos nove estados amazônicos conseguiu avançar nesse sentido. Só em meados da década seguinte – ou seja, dez anos depois –, que começaram a ter lugar iniciativas para a incubação de políticas florestais em âmbito regional.
É bem provável que o melhor exemplo do esforço estatal para elaboração, articulação e concertação de uma diretriz que atendesse às demandas dos atores sociais e agentes econômicos envolvidos com o setor florestal tenha ocorrido no Acre.
Todavia, longe de incorporar a importância das florestas para a humanidade, o que o mundo vinha fazendo desde 1992, a política florestal concebida no Acre procurou atender às expectativas dos envolvidos na sua elaboração.
Enquanto que, de um lado, o governo esperava fornecer à indústria florestal maior influência na formação da riqueza, ou seja, ampliar a participação da atividade na composição do PIB estadual, de outro, os empresários e produtores do setor esperavam aliviar os procedimentos para o licenciamento ambiental de suas atividades.
Na verdade, diante de uma conjuntura caracterizada pelas chamadas “Serrarias de Ramal”, em que predominava a figura do “Toreiro” e a oferta de 200 mil metros cúbicos anuais de madeira, essa primeira e tímida política pública teve como foco a superação do primitivismo tecnológico e a organização do setor florestal no estado.
Essa realidade, contudo, foi superada. Atualmente, indústrias de médio e grande porte dominam o setor florestal do Acre, apresentando uma produção que supera os 500 mil metros cúbicos anuais de madeira manejada. É chegada a hora, portanto, de instituir uma nova política florestal, dita de segunda geração.
Diferentemente das diretrizes de primeira geração, as políticas florestais de segunda geração devem assimilar a importância que o mundo confere ao ecossistema florestal da Amazônia, de forma que grandes equívocos venham a ser reparados. No caso do Acre, é emblemática a extinção da Secretaria Estadual de Florestas, ocorrida em 2012.
As políticas de segunda geração devem, enfim, traçar um rumo para o setor florestal pelos próximos 20 anos – quando, quem sabe, chegará a hora das políticas de terceira geração.
  
* Professor da Universidade Federal do Acre (Ufac), Engenheiro Florestal, Especialista em Manejo Florestal e Mestre em Economia e Política Florestal pela Universidade Federal do Paraná (UFPR) e Doutor em Desenvolvimento Sustentável pela Universidade de Brasília (UnB).