segunda-feira, 21 de junho de 2021

Uso múltiplo da biodiversidade florestal é a chave para o sucesso da Bioeconomia na Amazônia

 * Ecio Rodrigues

Imagine um almoxarifado que dispõe de mais de 50 produtos (a maioria perecível) em estoques reduzidos que duram cerca de 3 meses, cada um atendendo a um determinado nicho de mercado e sendo comercializado sob valor atrativo.

É mais ou menos assim que funciona a economia da biodiversidade florestal da Amazônia.

Sem embargo, conquanto inúmeras pesquisas tenham comprovado o valor econômico estratégico desse almoxarifado, excetuando-se a indústria madeireira, a região ainda não conta com empreendimentos bem sucedidos e em funcionamento voltados para a exploração da biodiversidade florestal.

Essa circunstância, pode-se dizer, perdura desde o final da Segunda Guerra Mundial, quando o principal produto da biodiversidade florestal amazônica, a borracha, foi praticamente eliminado do mercado de pneus.

Administrar esse complexo almoxarifado exige grande capacidade técnica. A boa notícia é que já foi desenvolvida tecnologia apropriada e há disponibilidade de engenheiros formados na própria região – o que permite o gerenciamento desse patrimônio, de maneira a gerar renda e emprego permanentemente.

A noção de uso múltiplo da biodiversidade é recente. Até a segunda metade da década de 1980, a ideia de uso múltiplo se restringia às diversas possibilidades de beneficiamento da madeira.

Naquela época, a engenharia florestal amazônica ainda não era capaz de “ver a floresta que existe além das árvores”, para citar um provérbio inglês comumente usado em macroeconomia.

A versão contemporânea do uso múltiplo, aplicado à biodiversidade florestal, foi formulada mais acentuadamente no Acre, onde um contingente expressivo de extrativistas, ou manejadores florestais, até hoje obtém renda com a venda de castanha, açaí, jarina e mesmo borracha.

É possível, inclusive, determinar horizontes temporais distintos para a evolução da tecnologia de uso múltiplo. Até 1987, a extração de borracha e castanha, apesar de praticada do mesmo modo havia mais de um século, ainda era a base da economia no estado.

Com efeito, os dois produtos representavam a maior parcela do ICMS arrecadado no setor primário. A exploração de um e outro foi considerada, pelo movimento ambientalista, uma atividade adequada do ponto de vista ecológico, uma vez que não causava danos à floresta.

Por isso, os ambientalistas apoiaram os seringueiros na reivindicação pela criação de reservas extrativistas, sendo que a partir daí mais de 2 milhões de hectares foram destinados a essa finalidade em território estadual.

Já mais para o final dos anos 80, a industrialização da castanha para exportação e a diversificação da borracha eram os desafios. Quantidade significativa de recursos públicos foram investidos em tecnologia e qualificação do produtor.

Todavia, a borracha quase sumiu das estatísticas de produção amazônica, e a culpa já não era mais dos asiáticos – como foi em 1911, o que inflamou nossos brios nacionalistas, diante da falácia da biopirataria –, mas, sim, dos paulistas, que vêm batendo recordes de produção anual desde 1993.

Por seu turno, a castanha não deslanchou por questões que vão da mera fragilidade gerencial a problemas complexos, como a inelasticidade do preço internacional.

A falência da base produtiva amparada no binômio borracha/castanha forçou a busca por outros produtos da biodiversidade florestal.

A visão acerca do potencial estratégico da Amazônia ganhou força nesse período. A partir do início da década de 1990, a biodiversidade florestal passou a ser enxergada de forma holística, ou seja, como um todo – evidenciando-se a capacidade da floresta para ofertar um leque variado de produtos e de serviços ambientais, estes relacionados principalmente ao sequestro de carbono e à produção de água.

Resumindo, o uso múltiplo pode ser explicado como a possibilidade de manejar a biodiversidade para obter riqueza de maneira perene, sem comprometer as relações ecológicas que ocorrem no interior da floresta.

Chamou-se, então, de manejo florestal de uso múltiplo essa atividade-fim da engenharia florestal amazônica, que permite administrar adequada e satisfatoriamente o almoxarifado da biodiversidade florestal, viabilizando a vocação produtiva da região.

Mas a sustentabilidade do uso múltiplo só será alcançada quando os produtores lograrem obter retorno financeiro superior ao auferido com a pecuária extensiva de gado. Enquanto a criação de boi for mais vantajosa financeiramente, o produtor será atraído para essa atividade.

Enfim, não há alternativa. A bioeconomia da Amazônia precisa se afastar da pecuária extensiva e promover o uso múltiplo da biodiversidade florestal.

 

*Professor Associado da Universidade Federal do Acre, engenheiro florestal, especialista em Manejo Florestal e mestre em Política Florestal pela Universidade Federal do Paraná, e doutor em Desenvolvimento Sustentável pela Universidade de Brasília.

 

 

segunda-feira, 14 de junho de 2021

Seca no rio Acre não será resolvida nem por Depasa nem por Saerb

 * Ecio Rodrigues

Há algumas semanas a imprensa noticiou que o abastecimento d’água nas cidades que dependem da vazão no rio Acre estava em situação de risco de racionamento.

Trata-se de um universo de consumidores que representa quase 70% da população do estado, concentrando-se nos oito municípios localizados ao longo da bacia hidrográfica.

Embora as informações disponíveis não sejam de fácil interpretação, pode-se afirmar com boa dose de certeza que o cruzamento da rodovia BR 364 com o rio Acre define, no território estadual, a região onde a pressão pelo desmatamento acontece com mais intensidade há mais de 30 anos, em consequência da expansão da pecuária extensiva de gado.

Enquanto isso, nesse longo interstício de três décadas, a administração dos serviços de captação, tratamento e distribuição de água em Rio Branco passou da empresa estadual Sanacre para a municipal Saerb, depois para a estadual Depasa e, agora, voltou para a Saerb.

Essa alternância se deu por conta de dificuldades de gerenciamento, e sempre no propósito de superar tanto limitações de ordem financeira, já que o sistema há muito tempo se tornou deficitário, quanto entraves técnico-administrativos, já que o serviço sempre foi prestado à população de maneira falha e ineficaz.

 A intenção, portanto, era tornar o serviço eficiente e superavitário, mas, a despeito das idas e vindas, esse objetivo até hoje não foi alcançado.

Na verdade, a experiência demonstra (e essa constatação não se aplica apenas a Rio Branco, mas à quase totalidade dos municípios brasileiros) que a gestão pública não consegue entregar um serviço de qualidade, tampouco obter eficiência financeira, causando prejuízos irreparáveis à sociedade. Não à toa, foi promulgado recentemente o marco legal do saneamento, que abriu caminho para a venda das empresas estatais.

Sem embargo, deixando de lado tais questões, uma coisa é certa: o desequilíbrio de vazão no rio Acre requer medidas urgentes.

Não adianta continuar fazendo alarde em torno da seca do rio no verão e da alagação, no inverno, se o ponto-chave do problema não for atacado pela política pública – o que, por sua vez, demanda investimento considerável, para o qual as frágeis economias locais não dispõem de recursos.

Para que a vazão volte a ter equilíbrio, é necessário promover a revitalização da bacia hidrográfica, zerando o desmatamento ali incidente e realizando restauração florestal nos trechos críticos de mata ciliar.

Não se olvida dos impactos ocasionados ao regime hídrico pelas alterações climáticas decorrentes do aquecimento global, que têm dimensão planetária e recebem a vergonhosa contribuição do desmatamento anual da Amazônia; porém, no plano da bacia hidrográfica, é possível fazer o rio retornar aos padrões de equilíbrio de vazão observados antes da retirada da floresta.

Como se sabe, a navegação de batelões de alto calado (acima de 2 metros) era corriqueira nas águas do rio Acre, pelo menos até o final da década de 1950; contudo, hoje em dia, em 70% do rio o leito não permite esse tipo de embarcação. Isso é fato.

Estudos apontam um acentuado assoreamento decorrente do desmatamento – e não apenas do desmatamento que ocorre na mata ciliar, que já perdeu metade de sua cobertura florestal, mas numa área bem maior, que sofre influência da bacia hidrográfica.

Por outro lado, experiências bem sucedidas comprovam que a remuneração do produtor pelo serviço de manejar a biodiversidade florestal traz excelentes resultados, no sentido de reverter a tendência de degradação da mata ciliar – devendo, pois, ser promovida e priorizada.

Com efeito, o produtor pode manejar essa floresta especial, a fim de melhorar a qualidade e a quantidade da água que vai abastecer a população urbana. Esse serviço deve ser remunerado pela empresa que capta, trata e leva a água até as residências e empresas.

Forçoso perceber que nem Sanacre, nem Depasa, nem Saerb, nem qualquer outra estatal vão dar conta dessa empreitada. O processo de assoreamento vai persistir e o rio Acre, continuar secando.

 

*Professor Associado da Universidade Federal do Acre, engenheiro florestal, especialista em Manejo Florestal e mestre em Política Florestal pela Universidade Federal do Paraná, e doutor em Desenvolvimento Sustentável pela Universidade de Brasília.

terça-feira, 8 de junho de 2021

Biodiversidade florestal da Amazônia, serviços ecossistêmicos e o preço

*Ecio Rodrigues

Ao vociferar que os países ricos devem pagar para não desmatarmos a Amazônia, o governo brasileiro, além de se rebaixar ao nível de um chantagista ordinário, erra na estratégia, desconsiderando o potencial econômico da biodiversidade florestal da região.

Por óbvio, a chave da questão não reside no pagamento – já que essas nações há muito tempo se dispõem a nos financiar, a fim de que cumpramos nossa responsabilidade perante a humanidade –, mas sim no que os tributaristas chamam de “efeito gerador”.

Nenhum país, por mais boa vontade que tenha, aceitará pagar quando o Brasil evidencia incapacidade para honrar os compromissos assumidos perante um pacto civilizatório destinado a evitar o aquecimento do planeta, como é o caso do Acordo de Paris, celebrado em 2015 por 195 países associados à ONU.

Entretanto, certamente todos os países anuirão em remunerar os serviços prestados pela biodiversidade florestal da Amazônia na redução do estoque de carbono na atmosfera; conservação da fauna e da flora; qualidade do ar e da água etc. – os chamados serviços ecossistêmicos.

O termo foi cunhado no âmbito da Convenção da Diversidade Biológica, ou simplesmente CDB, assinada durante a Rio 92 – diante da constatação de que a valoração de ecossistemas era inadiável, demandando a concepção de metodologia apropriada.

Ocorre que, longe de atrapalhar o crescimento da economia, a existência de ativos ambientais em países menos industrializados poderia funcionar como expressiva fonte de receitas.

Dessa forma, a partir de 1992 os países passaram a desenvolver métodos para estabelecer preço aos serviços ecossistêmicos fornecidos por cada hectare de biodiversidade florestal – sendo o surgimento do mercado de carbono um dos resultados desse esforço.

Por meio do Ipea (Instituto de Pesquisas Econômicas Aplicadas) e de toda a rede de universidades federais, o Brasil avançou muito no assunto, produzindo considerável lastro teórico sobre o tema.

Vieram da teoria econômica os rudimentos do método desenvolvido para calcular o preço do serviço ecossistêmico oferecido pela floresta na Amazônia, que foi baseado no tradicional custo de oportunidade da terra.

Grosso modo, trata-se de oferecer ao produtor que maneja um hectare de biodiversidade florestal uma compensação em dinheiro equivalente ao que ele embolsaria se desmatasse a terra para o uso agropecuário.

Fácil perceber que o cálculo se funda numa premissa bastante questionável – pela qual o produtor tem o direito de desmatar e portanto deve ser recompensado para abrir mão desse direito –, quando o paradigma deveria outro, a saber, remunerar o detentor de áreas de florestas pelos serviços de produção e purificação de água e ar, manutenção da diversidade biológica e do equilíbrio climático (citando apenas os serviços ambientais mais corriqueiros).

Além disso, esse método se mostrou complexo e impreciso, chegando a determinar um valor muito elevado para a remuneração a ser paga, entre 45 e 75 dólares por hectare, de acordo com a produtividade observada em cada tipo de solo.

Tal valor teve como referência os lucros obtidos com a produção de soja, sem dúvida o maior custo de oportunidade da terra na Amazônia, contudo, é uma cifra bem superior ao custo de oportunidade representado pela criação extensiva de gado, atividade que ocupa no mínimo 70% da área desmatada em toda a região e bem mais que isso nos territórios do Acre, Amapá, Roraima e Amazonas.

Mas, deixando as controvérsias metodológicas à parte, o ponto aqui abordado é a estratégia empregada pelos gestores na negociação com os países doadores para lograr alcançar o que o mundo espera dos brasileiros, o fim de todo e qualquer desmatamento na floresta amazônica.

Ao invés de aproveitar a oportunidade para discutir o preço dos serviços ecossistêmicos e obter recursos necessários à remuneração dos produtores, o governo optou por fazer chantagem rasteira – e, como sempre, de uma maneira estúpida, demonstrando indesculpável desconhecimento a respeito da Amazônia.

No final das contas, a própria incapacidade do Brasil para coibir o desmatamento (de longe a maior ameaça à biodiversidade florestal) foi usada como pretexto na exigência do pagamento. Em outras palavras, o país tenta usar em seu benefício a própria torpeza, algo absolutamente antiético, que jamais irá sensibilizar ou impressionar a comunidade internacional.

Negociações em andamento para a Conferência da ONU de Glasgow, que se realizará em novembro próximo, mostram que o momento é oportuno à apresentação de uma estratégia propositiva para zerar o desmatamento, o ilegal e o legalizado.

E o caminho é simples: o serviço ecossistêmico prestado pela biodiversidade florestal da Amazônia tem preço.

                                  

*Professor Associado da Universidade Federal do Acre, engenheiro florestal, especialista em Manejo Florestal e mestre em Política Florestal pela Universidade Federal do Paraná, e doutor em Desenvolvimento Sustentável pela Universidade de Brasília.