segunda-feira, 21 de setembro de 2015

Um órgão público para se orgulhar




* Ecio Rodrigues
No Brasil existe um componente ideológico, ou pseudoideológico, que sempre contamina a discussão acerca da relação discrepante que se constata entre a proliferação de órgãos públicos e a demanda da sociedade por serviços públicos – que, em tese, deveriam ser prestados por esses órgãos.
Para explicar melhor. No tema da Estrutura Pública, pode-se dizer, grosso modo, que vigoram duas correntes principais (e que estão fora daquele espectro pseudoideológico). Por um lado, há os que apoiam a criação de tantos órgãos e empresas quanto permitir a capacidade orçamentária do Estado, independentemente da existência ou não de demanda por serviços.
E por outro lado, há os que defendem o chamado “Estado Mínimo”, pelo qual a atuação dos órgãos públicos deve se limitar à prestação de alguns serviços fundamentais, de forma exclusiva ou compartilhada.  
Como serviços exclusivos, ou seja, aqueles cuja prestação caberia tão somente ao Estado, apontem-se atividades afetas ao Poder Judiciário e ao Legislativo. 
Quanto aos serviços compartilhados, são os que podem ser ofertados ao público ao mesmo tempo por Estado, empresas e organizações da sociedade civil. Enquanto o Estado, por obrigação constitucional, oferece esses serviços gratuitamente, os outros prestadores vão cobrar – seja do próprio Estado, seja diretamente dos clientes.
Essa prestação compartilhada é bastante comum no âmbito da educação e da saúde, áreas em que empresas e entidades oferecem seus serviços e cobram por eles. E no caso do SUS, muitas vezes o serviço é prestado por um hospital privado, mas é pago pelo Estado – com o dinheiro dos contribuintes, obviamente.
Cabe ao cliente, se e quando puder fazer essa opção, julgar o serviço que lhe for mais conveniente.  Por sinal, quanto maior o número de empresas e de organizações da sociedade envolvidas nesses serviços, melhor para os clientes que vão pagar.
No regime do Estado Mínimo é possível se concentrar na prestação de alguns serviços com mais qualidade, uma vez que o aparato estatal não está inchado, ocupando-se com atividades que deveriam ser da alçada do setor privado.
Para os que creem que não há limites para a criação de órgãos e empresas estatais, ou que esse limite é imposto apenas quando o Estado Máximo quebra, não há problema no fato de o Estado intervir na economia, mediante a criação de uma fábrica de cimento, um tanque de piscicultura, uma metalúrgica e até mesmo uma indústria de aviação.
Na visão dos defensores dessa corrente de pensamento, a criação e manutenção de estatais, seja na forma de fundações, de empresas de economia mista, de instituições financeiras e assim por diante, é o caminho a ser seguido, já que o lucro auferido por essas organizações é destinado à sociedade.
Uma ideia que parece tentadora, afinal, baseia-se na premissa de que é melhor que esses lucros sejam divididos entre todos do que acumulados na conta de alguns.
Mas não é bem assim. Se não na sua totalidade, na imensa maioria das vezes instituições estatais dão prejuízos que requerem sempre mais dinheiro. No Brasil, é necessário um grande esforço para encontrar empreendimentos que, na relação Custo/Benefício, trazem mais benefício que custos para a sociedade.
Em termos de qualidade, de outra banda, salvo algumas exceções que não vale a pena citar, os serviços prestados por estabelecimentos públicos estão sempre bem aquém dos oferecidos pela iniciativa privada e pelas organizações da sociedade civil.
A triste constatação é que não há órgão público que seja motivo de orgulho, como um dia foi a Petrobras. Isto é um fato, e contra fatos não há fundamentações ideológicas.  
            
* Professor Associado da Universidade Federal do Acre, engenheiro florestal, especialista em Manejo Florestal e mestre em Política Florestal pela Universidade Federal do Paraná e doutor em Desenvolvimento Sustentável pela Universidade de Brasília.

quarta-feira, 16 de setembro de 2015

Como funciona o manejo sustentável

Zerar o desmatamento ilegal é obrigação, não proposta



* Ecio Rodrigues
Vez ou outra a gestão pública ambiental parece receber alguma revelação. A última foi a descoberta de que na Amazônia existem dois tipos de desmatamento e que a distância entre ambos é abismal: o desmatamento ilegal (que, hoje, não deveria existir) e o legalizado (que no futuro continuará existindo).
A despeito da “descoberta” do governo, todavia, não há nenhuma novidade aí. Não é exagero dizer que os envolvidos com as atividades do setor primário na Amazônia sempre tiveram conhecimento e sempre se aproveitaram do desmatamento ilegal.
A ocorrência legalizada do desmatamento, de outra banda, é o principal motivo a impedir que a Amazônia se livre dessa mazela – de longe, o maior problema ambiental da região e o maior empecilho ao alcance da sustentabilidade.
Ao que tudo indica, a ficha do governo caiu por ocasião das negociações que resultaram no acordo ambiental celebrado com os americanos, e que por sua vez foi preparatório para a COP 21 – conferência dos países associados ao sistema ONU a ser realizada em Paris em dezembro de 2015. A COP 21 decidirá sobre questões como a redução da quantidade de carbono lançada na atmosfera.
Pesquisas científicas demonstram que o desmatamento na Amazônia é uma das fontes do carbono que esquenta o planeta. Desnecessário dizer que os americanos esperavam uma atitude responsável e resoluta por parte dos governantes brasileiros.
A autoimposição de objetivos destinados a zerar certos índices indesejáveis é resultado do pragmatismo americano, e por lá esse objetivo foi alcançado no âmbito de temas bastante complexos – como o da violência em metrópoles.
Zerar o desmatamento na Amazônia, para o governo americano e para o mundo, é ponto imperativo, uma vez que a questão extrapola os assuntos domésticos. O fim do desmatamento, mais do que um compromisso nacional, é uma responsabilidade perante o planeta.
Acontece que, às vésperas da assinatura do acordo, os gestores brasileiros atentaram para um detalhe: o desmatamento simplesmente não poderia ser zerado. Inicialmente, os americanos chegaram a pensar que a dificuldade estava no prazo proposto, de 15 anos.
Jamais imaginavam que a resposta seria nunca. Não era o prazo que estava em discussão. Parece até uma charada, mas a verdade é que é possível zerar o desmatamento ilegal, inclusive antes de 2030, todavia, não é possível zerar o desmatamento na Amazônia, nem mesmo depois de 2030.
Correram os brasileiros a explicar o que todos já sabiam e que os americanos, provavelmente, tiveram dificuldade para entender. Que ao comemorar a queda na taxa de desmatamento, festejando cada redução anual e pulando de alegria quando essa taxa ficou abaixo dos 5.000 km2 em 2012, o governo, desde sempre, tentava o óbvio: apenas impelir a observância da lei, nada mais do que cumprir com a sua obrigação.
Há uma possível explicação para o declínio verificado na taxa de desmatamento nos últimos cinco anos – o fato de que, na faixa do Arco do Desmatamento e sobretudo no caso grande propriedade, toda a possibilidade de desmate legal já se exauriu, e isso ocasionou a tendência de queda. Contudo, sem embargo da força dessa tese, os gestores públicos não têm interesse na sua validação.
Por outro lado, a tese de que a nova dinâmica do desmatamento assume como vetor a pequena propriedade e é escudada pela legalidade também é válida, embora o governo não saiba como lidar com o desmatamento legal levado a cabo pelo agricultor familiar, sempre enaltecido e resguardado na esfera da gestão pública ambiental.
Uma coisa é certa. O desmatamento ilegal mais cedo ou mais tarde acaba, mas o legal, não. Portanto, nunca a floresta amazônica deixará de ser, todos os anos, desmatada.

* Professor Associado da Universidade Federal do Acre, engenheiro florestal, especialista em Manejo Florestal e mestre em Política Florestal pela Universidade Federal do Paraná e doutor em Desenvolvimento Sustentável pela Universidade de Brasília.


sexta-feira, 4 de setembro de 2015

Por uma Lei Municipal da Mata Ciliar

Nada mais cômodo do ponto de vista político, em especial para os que acham que a política se resume a não perder votos, que, na área ambiental, temas polêmicos como desmatamento e queimadas sejam tratados por regras federais. O mesmo vale para a definição da largura da faixa de mata ciliar dos rios. O mínimo de 30 metros estabelecidos pelo Código Florestal é absolutamente insuficiente para que a mata ciliar exerça suas funções. Todavia, e ainda que tenham competência para aumentar essa largura, estados e municípios não se dispõem a fazê-lo.


* Ecio Rodrigues
A Constituição Federal estabelece o regime de competência concorrente entre os entes federativos para legislar sobre questões relacionadas à defesa, conservação e proteção do meio ambiente. Significa que à União cabe preceituar sobre normas gerais, deixando aos Estados e Distrito Federal competência complementar e supletiva. Quanto aos Municípios, estes também podem formular seus próprios ordenamentos, na medida em que lhes é permitido legislar sobre assuntos de natureza local.
Grosso modo, pode-se dizer que, em matéria ambiental, os Estados podem legislar, desde que não contrariem as normas federais; por sua vez, os Municípios não podem se contrapor à legislação federal e à estadual.
A despeito dessa sistemática estabelecida no plano da competência legislativa ambiental, o que se se observa é que não raro os entes estaduais e municipais se restringem meramente a reproduzir as prescrições da legislação federal, abrindo mão da prerrogativa de que dispõem, de aprimorar e aprofundar as regras gerais de proteção do meio ambiente com a introdução de suas próprias estipulações (que, evidentemente, devem ser mais restritivas que as federais).
É o que ocorre no caso específico da mata ciliar. A legislação federal, notadamente o Código Florestal, classifica a mata ciliar como Área de Preservação Permanente, estabelecendo uma faixa mínima de floresta a ser mantida em função da largura do rio ou corpo d’água. Pois bem. Ao elaborarem suas normas ambientais, Estados e Municípios se limitam a repetir a largura mínima fixada pelo Código Florestal, preferindo não se intrometer numa matéria geralmente tão polêmica.
Todavia, se do ponto de vista dos interesses políticos parece ser mais vantajoso deixar para o governo federal o encargo de ditar as regras alusivas à mata ciliar, do ponto de vista técnico, quando se avalia o resultado obtido em face da regra federal na realidade de cada localidade, o retorno para a sociedade é bastante questionável.
Cientistas, por meio da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência e da Academia Brasileira de Ciência, não cansam de se referir à existência de estudos demonstrando que a mata ciliar impede o assoreamento dos rios. Não há dúvida científica quanto a isso, é um fato. Da mesma forma, é fato científico que quanto maior a largura da faixa de mata ciliar, menor será o assoreamento dos rios.
Ou seja, a largura mínima da faixa de mata ciliar estabelecida pelo Código Florestal (30 metros) é, cientificamente, mínima. Por conseguinte, vai impedir o mínimo de assoreamento. Na prática, essa largura nem sempre é apropriada e, dependendo da situação do rio, não é suficiente, sendo indispensável a sua ampliação.
Os gestores estaduais e municipais devem ser mais resolutos, portanto, e acionar os parlamentares para a aprovação de regras ajustadas à necessidade de suas bacias hidrográficas, a fim de aumentar-se a quantidade de florestas existentes na mata ciliar e, desse modo, fornecer maior proteção aos fluxos d’água e reduzir os riscos de ocorrência de secas e alagações.
Nada mais oportuno para um município como Brasiléia, por exemplo. Localizada na fronteira do Acre com a Bolívia, a cidade quase desapareceu do mapa na alagação de 2015. Com vistas a se prevenirem novas catástrofes, o prefeito e os vereadores de Brasileia deveriam preocupar-se em discutir uma largura de mata ciliar específica e compatível com aquela realidade.
Por sinal, em 2010, pesquisadores oriundos da Engenharia Florestal da Universidade Federal do Acre envolvidos no “Projeto Ciliar Só-Rio” realizaram uma audiência pública na Câmara de Brasiléia, tendo apresentado uma proposta de “Lei Municipal da Mata Ciliar” – que estipulava uma faixa marginal de florestas tecnicamente adequada para o rio Acre, no trecho em que esse rio corta o território municipal.
A despeito do esforço dos pesquisadores, contudo, os vereadores não deram a mínima. O estrago causado pela histórica alagação demonstra o quanto estavam – e infelizmente continuam – errados.

* Professor Associado da Universidade Federal do Acre, engenheiro florestal, especialista em Manejo Florestal e mestre em Política Florestal pela Universidade Federal do Paraná, e doutor em Desenvolvimento Sustentável pela Universidade de Brasília.

segunda-feira, 17 de agosto de 2015

O dilema da castanheira na Amazônia




* Ecio Rodrigues
A castanheira (Bertholletia excelsa) deveria ser alçada à condição de “árvore símbolo” da Amazônia – ou, pelo menos, do Acre.
Explica-se. Para além de sua beleza e exuberância – a espécie ostenta exemplares de árvores que ultrapassam 40 metros de altura, com fustes perfeitamente retilíneos e quase cilíndricos, sustentando copas robustas e arredondadas, sinuosamente desenhadas nos cumes, onde surgem as flores e os ouriços com as apreciadas castanhas – a castanheira tem grande significado econômico, social e ecológico.
Nos locais de ocorrência da castanheira, a castanha-do-brasil é, de longe, o produto florestal mais importante. É fácil afirmar que no período de janeiro a março, quando acontece a safra de castanha, os produtores conseguem renda superior à obtida na safra de borracha – que dura de seis a oito meses, ou seja, mais que o dobro do tempo. A renda obtida em cada safra de castanha é superior até mesmo à oriunda da exploração de madeira sob a tecnologia do manejo florestal comunitário.
A produção de castanha, ademais, envolve um contingente elevado de manejadores florestais, cujas unidades de produção se espalham no interior do ecossistema florestal em toda a extensa superfície de ocorrência da espécie, que vai do vale do rio Acre até o Amapá, formando um arco quase que sobreposto ao denominado “arco do desmatamento”.
E é aí que mora o perigo.
Explica-se, novamente. Embora não se possa desconsiderar a pressão para a derrubada da castanheira (em face da qualidade e da quantidade de madeira presente no tronco de cada árvore), na verdade, o que põe em risco as safras de castanha e a própria árvore em si é o fato de que, naquela região do arco do desmatamento, a pecuária avança sobre a floresta, que é derrubada para dar lugar à pastagem.
 Algumas espécies florestais amazônicas gozam de proteção legal. É o caso, entre outas, do mogno e da virola – e também da castanheira. Todavia, a legislação proíbe a derrubada da castanheira, mas não proíbe o desmatamento. Significa que, ao promover o desmate duma determinada área de terra para fins agrícolas ou para criação de gado, o fazendeiro não pode derrubar as árvores de castanheira ali presentes.
Ainda que a intenção dos legisladores tenha sido a de proteger essa espécie (o que não deixa de ser um reconhecimento à sua simbologia), a regra acaba por ter efeito contrário. As castanheiras ficam isoladas no meio dos pastos, param de produzir castanhas e acabam por definhar e morrer. É muito comum, na cena rural amazônica, avistarem-se as lindas castanheiras secando e perecendo em meio à pastagem.
Moral da história: como a castanheira precisa da floresta para cumprir suas funções econômicas, sociais e ecológicas, não basta proibir o abate da árvore; nas áreas de ocorrência da espécie, o que deve ser objeto de proteção é a floresta.
Ao permitir o desmatamento e proibir a derrubada da castanheira (numa mesma área), a legislação criou o que pode ser denominado “dilema da castanheira”.
Explica-se, mais uma vez. Tendo em vista que a liberação do corte das castanheiras remanescentes em pastos consolidados poderia proporcionar, no curto prazo, algum benefício ao pecuarista responsável pelo desmatamento, prefere-se não resolver o problema, mesmo diante da certeza de que os prejuízos resultantes desse problema são maiores que os eventualmente decorrentes de sua solução.
Como quase tudo na vida, o dilema da castanheira certamente possui uma saída racional que não significará benefício ao infrator nem prejuízo para a sociedade (o confisco das árvores pelo Estado, por exemplo).
No entanto, como é muito difícil desagradar os pecuaristas, o dilema permanece – e as castanheiras continuam a definhar.    

* Professor Associado da Universidade Federal do Acre, engenheiro florestal, especialista em Manejo Florestal e mestre em Política Florestal pela Universidade Federal do Paraná e doutor em Desenvolvimento Sustentável pela Universidade de Brasília.