segunda-feira, 19 de setembro de 2016

Política pública leva o Acre a bater recorde de queimadas em 2016



*Ecio Rodrigues
Segundo os dados do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais, Inpe, até o dia 18 de setembro de 2016, um domingo, faltando ainda 3 meses e meio para o fim do ano, o Acre bateu novo recorde de ocorrências de queimadas, com a contagem de 5.903 focos de calor desde janeiro.
Esses dados descartam a cômoda hipótese insistentemente divulgada e que apregoa, com certo grau de insensatez, que só os produtores rondonienses, mato-grossenses e bolivianos queimam – os do Acre são altruístas e não fazem isso.
Também descartam a igualmente cômoda hipótese segundo a qual a culpa pela fumaça é de fenômenos climáticos como o El Niño, que reduzem a umidade relativa e a precipitação a níveis muito baixos, dando origem a queimadas descontroladas (sic).
Por “queimada descontrolada” entenda-se uma queimada “legal”, licenciada, mas sobre a qual o produtor supostamente perdeu o controle. Parte-se do mesmo contrassenso aplicado ao desmatamento – o de que é possível conviver com as queimadas licenciadas e que as clandestinas podem ser combatidas com fiscalização.
A fragilidade desse raciocínio fica evidente diante dos números atestados pelo Inpe. Ora, é improvável que o recorde se deva às queimadas clandestinas. E mesmo que assim fosse, seria necessário um aparato de fiscalização gigantesco, com um custo simplesmente proibitivo, para ser capaz de encontrar todos os focos de calor, ir até os respectivos locais, identificar as propriedades, os proprietários e, por fim, averiguar se estes – parafraseando o famoso agente secreto inglês – têm licença para queimar.
Na verdade, só será possível chegar a uma solução para as queimadas que destroem a floresta e o rio Acre há mais de 30 anos quando os gestores públicos assumirem três constatações e, por conseguinte, suas inconveniências eleitorais.
Primeiro, que a fumaça é daqui, portanto, discutir a origem da fumaça é perda de tempo e não contribui em nada para a solução do problema. 
Segundo, que a decisão de investimento na queimada, tomada na alçada privada de cada produtor, tem motivação econômica. Embora as alterações nas variáveis climáticas trazidas pelo El Niño contribuam para melhorar a eficiência da queimada, a decisão de queimar sempre será do produtor.
Terceiro, que decorre da política pública o estímulo para o produtor investir na queimada. Em última instância, são os modelos de produção rural defendidos pelo prefeito e pelo governador que levam o produtor a optar pela queimada, ao invés de, por exemplo, manejar a floresta.
Exemplos de política pública que induzem o produtor a decidir pela queimada são recorrentes. Há muito tempo a política estadual direcionada ao setor primário apoia a criação de boi (ou de cabritos e ovelhas, dá no mesmo) em todos os elos da cadeia produtiva – “do rabo ao chifre”, como se diz no meio rural.
Não faltam crédito, vacinação, assistência técnica, ramal, abatedouro, e assim por diante. Investiu-se recurso público considerável para credenciar o Acre como zona livre de doenças e possibilitar a exportação de gado sabe-se lá para onde.
Fazer uso do fogo para limpar áreas de floresta recém-desmatadas ou praticar a queimada para fertilizar pastos já formados é a resposta do produtor ao incentivo vindo da política pública voltada para a criação de gado.
O fato é que governadores e prefeitos aconselham o produtor a aumentar sua criação de boi sempre que aparecem na televisão.
Todavia, não há como criar boi e evitar recordes de queimadas.

*Professor Associado da Universidade Federal do Acre, engenheiro florestal, especialista em Manejo Florestal e mestre em Política Florestal pela Universidade Federal do Paraná, e doutor em Desenvolvimento Sustentável pela Universidade de Brasília.

terça-feira, 13 de setembro de 2016

Fumaça é do Acre mesmo



* Ecio Rodrigues
Na seca do rio Acre, falta água ou falta chuva? Embora pareça um tanto idiota, a pergunta é mais que oportuna. E a resposta ajuda a entender o problema, evitando-se a tradicional ladainha da imprensa: Vai alagar? Vai secar?   
Certamente a quantidade de água que integrava o ciclo hídrico da bacia do rio Acre, e que foi perdida juntamente com as árvores removidas ou queimadas durante o processo de desmatamento, é maior que a água da chuva que teima em não vir. A triste resposta é que falta agora e continuará faltando a água que foi perdida no desmatamento para todo o sempre.
Acontece que o equilíbrio hídrico foi corrompido no final da década de 1980, quando as taxas de desmatamento para a ocupação da pecuária de gado estavam no pico, tendo batido recordes alarmantes em 1994 e em 2005, uma década depois.
De lá (1994) para cá (2016), houve muita “educação ambiental”, muita publicidade destacando o amor à natureza, muita propaganda de que no Acre tudo é diferente, e pouquíssima, quase nenhuma, política pública para encontrar soluções. O problema da queimada continua o mesmo – nas áreas já desmatadas e nas que ainda virão a ser, em 2016, 2017, 2018...
Discursos e proselitismos não vão fazer a água aparecer nem resolver os impactos decorrentes da seca e da alagação. A recuperação do equilíbrio do ciclo da água que corre na bacia hidrográfica do rio Acre depende de ações concretas, de medidas voltadas para barrar o desmatamento e a irmã gêmea deste, a queimada.
Mas, como é impossível desvincular esses males da pecuária, em última análise o combate ao desmatamento e às queimadas implica a imputação, a essa atividade, de gravames e taxações que a tornem menos atrativa frente a outras opções empresariais de investimento.
Basta dizer que não se combate o desmatamento com incentivos ficais à pecuária. Como a redução de 80% recentemente concedida sobre o ICMS cobrado para levar boi vivo ao abate em Rondônia. Em plena seca, as queimadas batendo recordes, e a prioridade do governo é incentivar a pecuária. Insano, não?
E também não adianta fingir que os céus são os culpados.
Por sinal, desde 2000 os gestores públicos repetem o falso mantra de que o volume absurdo de fumaça que todos os anos aflige o Acre não se origina da grande quantidade de queimadas anualmente registrada por satélite em território estadual: insiste-se que a fumaça é trazida pelo vento, que vem da Bolívia, de Rondônia, Mato Grosso, enfim, de qualquer lugar que não seja o próprio Acre.  
Estudo realizado ainda em 2008 pelo Inpe, Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais, instituição que compõe o seleto grupo de órgãos estatais com reputação inconteste, trouxe certeza ao que já era óbvio: onde há fumaça, há fogo! A fumaça que nos sufoca e que faz lotar os hospitais é produzida no Acre mesmo.
Derrubada a hipótese da “curva do vento” pelo Inpe, as explicações se voltam para os fenômenos climáticos, que, como não poderia ser diferente, são responsabilidade dos americanos, cujas indústrias jogam no céu uma quantidade infinita de fumaça.
Quer dizer, a culpa, novamente, recai sobre fatores sobre os quais não se tem governabilidade: os céus, os americanos e suas indústrias são os responsáveis pela ocorrência do El Niño, que faz secar o rio Acre. Pronto. Basta continuar com as campanhas pedindo socorro ao rio e às florestas do Acre para se obter um bônus de consciência e dormir sossegado.
Quando 2017 chegar, com seca ou alagação, com desmatamento e queimadas, vai dar para ver as novidades trazidas pelos céus. E continuar de consciência tranquila.

*Professor Associado da Universidade Federal do Acre, engenheiro florestal, especialista em Manejo Florestal e mestre em Política Florestal pela Universidade Federal do Paraná, e doutor em Desenvolvimento Sustentável pela Universidade de Brasília.

quinta-feira, 8 de setembro de 2016

Suposto direto à queimada põe a Amazônia em risco



* Ecio Rodrigues
Nos idos de 2009, por meio da Ação Civil Pública n0 2009.30-1438-4 (à época batizada de “Fogo Zero”), os Ministérios Públicos Federal e Estadual questionaram judicialmente o papel dos gestores estaduais e municipais em relação ao licenciamento da nefasta prática agrícola da queimada.
Com grande dose de pioneirismo, o escopo da ação era obrigar o governo estadual a suspender o licenciamento ambiental das queimadas no Acre.
Argumentou-se, com sensatez, que, diante da constatação de que as normas federais transferem aos estados a competência para a regulação do licenciamento ambiental das queimadas, a decisão pela suspensão definitiva ou temporária desse licenciamento se inclui nessa competência, sendo, desse modo, de alçada estadual.
A sentença de 10 grau perfilhou a tese defendida pelos órgãos ministeriais, reconhecendo, primeiro, que a prática da queimada é intolerável na Amazônia, já que é causa de prejuízos econômicos, sociais e ambientais irreparáveis para a sociedade; segundo, que o direito de propriedade não abrange o direito à queimada – vale dizer, o exercício dessa prática não é um direito do produtor, portanto, não pode ser objeto de licenciamento.
Lamentavelmente, essa histórica decisão judicial não produziu os efeitos esperados, e desde 2011 o número de queimadas realizadas anualmente no Acre vem aumentando significativamente, a ponto de alcançar a tendência de alta recorde observada em 2016, com risco de incêndio florestal (como o ocorrido em 2005).
Ao que parece, prevaleceu o entendimento defendido pelos gestores estaduais, segundo o qual o direito de queimar é prerrogativa do produtor rural.  
Sem embargo, quando se examinam atentamente os dispositivos que preveem esse suposto “direito de queimar”, fica evidente a confusão conceitual que se faz entre o significado do termo “fazer uso do fogo” e a definição de “queimada” – que poucos entendem e muitos consideram ser a mesma coisa, mas não é.
Ocorre que nem o Código Florestal de 1965, nem o Código de 2012, e nem tampouco as normativas atinentes ao licenciamento das queimadas trazem textualmente a palavra “queimada”, mas tão-somente a locução “fazer uso do fogo”.
A expressão “fazer uso do fogo” traduz uma ação única, excepcional e localizada; diferentemente, “queimada” é um termo técnico, e diz respeito a uma prática agrícola. Nessa condição, e da mesma forma como acontece com outras práticas, como a aração e a gradagem, a queimada é executada todos os anos, numa mesma área, e sob um determinado objetivo (no caso, o de tornar o solo fértil).
Segundo prescrevem as normas vigentes, o produtor, em situação excepcional, poderá “fazer uso do fogo”, com a finalidade de limpar áreas recém-desmatadas para cultivo. Ora, tal prescrição, definitivamente, não se refere à prática da queimada.
Essa diferenciação, diga-se, é fundamental, uma vez que, no cômputo total dos focos de calor registrados pelo satélite, a quantidade de áreas de florestas recém-desmatadas não chega a 20% das queimadas realizadas em áreas já cultivadas (a grande maioria com o plantio de capim).
Significa dizer que o governo estadual pode até alegar que o produtor tem direito ao “uso do fogo” em áreas novas, onde o desmatamento foi autorizado naquele respectivo ano. Deve ser responsabilizado pelo efeito nocivo daí decorrente.
Mas não pode alegar a existência do direito à queimada, pois esse direito não tem previsão legal. Por conseguinte, deve ser responsabilizado pela decisão de licenciar.

*Professor Associado da Universidade Federal do Acre, engenheiro florestal, especialista em Manejo Florestal e mestre em Política Florestal pela Universidade Federal do Paraná, e doutor em Desenvolvimento Sustentável pela Universidade de Brasília.