segunda-feira, 17 de agosto de 2015

O dilema da castanheira na Amazônia




* Ecio Rodrigues
A castanheira (Bertholletia excelsa) deveria ser alçada à condição de “árvore símbolo” da Amazônia – ou, pelo menos, do Acre.
Explica-se. Para além de sua beleza e exuberância – a espécie ostenta exemplares de árvores que ultrapassam 40 metros de altura, com fustes perfeitamente retilíneos e quase cilíndricos, sustentando copas robustas e arredondadas, sinuosamente desenhadas nos cumes, onde surgem as flores e os ouriços com as apreciadas castanhas – a castanheira tem grande significado econômico, social e ecológico.
Nos locais de ocorrência da castanheira, a castanha-do-brasil é, de longe, o produto florestal mais importante. É fácil afirmar que no período de janeiro a março, quando acontece a safra de castanha, os produtores conseguem renda superior à obtida na safra de borracha – que dura de seis a oito meses, ou seja, mais que o dobro do tempo. A renda obtida em cada safra de castanha é superior até mesmo à oriunda da exploração de madeira sob a tecnologia do manejo florestal comunitário.
A produção de castanha, ademais, envolve um contingente elevado de manejadores florestais, cujas unidades de produção se espalham no interior do ecossistema florestal em toda a extensa superfície de ocorrência da espécie, que vai do vale do rio Acre até o Amapá, formando um arco quase que sobreposto ao denominado “arco do desmatamento”.
E é aí que mora o perigo.
Explica-se, novamente. Embora não se possa desconsiderar a pressão para a derrubada da castanheira (em face da qualidade e da quantidade de madeira presente no tronco de cada árvore), na verdade, o que põe em risco as safras de castanha e a própria árvore em si é o fato de que, naquela região do arco do desmatamento, a pecuária avança sobre a floresta, que é derrubada para dar lugar à pastagem.
 Algumas espécies florestais amazônicas gozam de proteção legal. É o caso, entre outas, do mogno e da virola – e também da castanheira. Todavia, a legislação proíbe a derrubada da castanheira, mas não proíbe o desmatamento. Significa que, ao promover o desmate duma determinada área de terra para fins agrícolas ou para criação de gado, o fazendeiro não pode derrubar as árvores de castanheira ali presentes.
Ainda que a intenção dos legisladores tenha sido a de proteger essa espécie (o que não deixa de ser um reconhecimento à sua simbologia), a regra acaba por ter efeito contrário. As castanheiras ficam isoladas no meio dos pastos, param de produzir castanhas e acabam por definhar e morrer. É muito comum, na cena rural amazônica, avistarem-se as lindas castanheiras secando e perecendo em meio à pastagem.
Moral da história: como a castanheira precisa da floresta para cumprir suas funções econômicas, sociais e ecológicas, não basta proibir o abate da árvore; nas áreas de ocorrência da espécie, o que deve ser objeto de proteção é a floresta.
Ao permitir o desmatamento e proibir a derrubada da castanheira (numa mesma área), a legislação criou o que pode ser denominado “dilema da castanheira”.
Explica-se, mais uma vez. Tendo em vista que a liberação do corte das castanheiras remanescentes em pastos consolidados poderia proporcionar, no curto prazo, algum benefício ao pecuarista responsável pelo desmatamento, prefere-se não resolver o problema, mesmo diante da certeza de que os prejuízos resultantes desse problema são maiores que os eventualmente decorrentes de sua solução.
Como quase tudo na vida, o dilema da castanheira certamente possui uma saída racional que não significará benefício ao infrator nem prejuízo para a sociedade (o confisco das árvores pelo Estado, por exemplo).
No entanto, como é muito difícil desagradar os pecuaristas, o dilema permanece – e as castanheiras continuam a definhar.    

* Professor Associado da Universidade Federal do Acre, engenheiro florestal, especialista em Manejo Florestal e mestre em Política Florestal pela Universidade Federal do Paraná e doutor em Desenvolvimento Sustentável pela Universidade de Brasília.

segunda-feira, 10 de agosto de 2015

Da relação entre mata ciliar e equilíbrio hidrológico




* Ecio Rodrigues
Em suma, a existência de florestas, notadamente as que são consideradas especiais e que ocupam as faixas de mata ciliar, não vai impedir a alteração no regime de chuvas – cuja dinâmica depende do processo de mudanças climáticas, guardando certo grau de imprevisibilidade.
Todavia, se não é possível prever com exatidão a quantidade de chuvas que irá cair numa certa localidade, num espaço de tempo significativo (durante uma determinada estação do ano, por exemplo), já é possível afirmar, de outra banda, que a presença duma quantidade maior de biomassa nas margens de um rio – seja mediante a ampliação da largura da faixa de mata ciliar, seja mediante o adensamento da quantidade de árvores ali existentes – garante maior equilíbrio hidrológico ao rio.
Significa dizer que o rio não só apresentará diferenças de vazão menos acentuadas como também (e mais importante) apresentará maior resiliência, ou seja, maior capacidade para reagir às flutuações abruptas de vazão.
Portanto, continuando o raciocínio, pode-se dizer que as funções exercidas pela mata ciliar vão muito além dos corriqueiros e difundidos serviços de controle de assoreamento e de manutenção de habitat para fauna terrestre.
Essas funções incluem, por exemplo, o isolamento da água do rio de queimadas e incêndios florestais, que elevam a temperatura e matam a ictiofauna; ou, ainda, o sequestro de carbono, possibilitando a imobilização duma expressiva quantidade desse gás, considerado o mais perigoso para o efeito estufa.
Sendo assim – e ainda que à primeira vista essa constatação possa aparentar algum exagero – a restauração florestal da faixa de mata ciliar existente ao longo dum rio poderá auxiliar na estabilidade da vazão e no equilíbrio hidrológico desse curso d’água, reduzindo os efeitos de eventos extremos, como secas e alagações prolongadas.
Abram-se aqui parênteses, a fim de esclarecer o emprego – proposital – do termo “prolongado” na adjetivação dos eventos extremos.
A aferição do tempo de duração das calamidades (em especial no caso das alagações) é uma tendência cada vez mais comum, já que essa intermitência temporal irá repercutir nas ações estatais levadas a cabo de maneira geral e, em especial, na assistência prestada aos atingidos.
Em síntese, não só os extremos de vazão estão cada vez mais preocupantes (ou seja, os níveis mínimos de água estão cada vez mais mínimos, e os máximos, cada vez mais máximos) como também o tempo de duração desses extremos de vazão vem se alargando. A cada evento percebe-se que o rio permanece por mais tempo muito seco e por mais tempo muito alagado, exigindo da sociedade um investimento cada vez maior de recursos públicos.
A boa notícia é que existe uma saída, e ela está na mata ciliar. Todavia, como a relação entre a água que flui no rio e a floresta presente na mata ciliar demorou a chamar a atenção dos pesquisadores, ainda existem poucos estudos sobre o tema.
Cabe à política pública promover a realização de pesquisas sobre a relação entre a mata ciliar e a ocorrência de eventos extremos, bem como fomentar a execução de projetos voltados para a restauração desse tipo peculiar de florestas.  
Somente por meio duma política púbica que considere os serviços prestados pela mata ciliar – reconhecendo, inclusive, a conveniência em remunerar-se o produtor pelo manejo dessas formações florestais, com o objetivo precípuo de favorecer a interação água/floresta – será possível alcançar o equilíbrio hidrológico do rio.
Afinal, uma coisa é certa. Quanto mais biomassa florestal existir na mata ciliar, maior será a influência no equilíbrio hidrológico do rio.

* Professor Associado da Universidade Federal do Acre, engenheiro florestal, especialista em Manejo Florestal e mestre em Política Florestal pela Universidade Federal do Paraná, e doutor em Desenvolvimento Sustentável pela Universidade de Brasília.

segunda-feira, 3 de agosto de 2015

Experiência do Projeto Ciliar Só-Rio Acre completa cinco anos

* Ecio Rodrigues


 A discussão sobre as espécies que devem ser empregadas na restauração florestal das áreas de mata ciliar persiste, a despeito de o Código Florestal e a Resolução 429/2011 (do Conama) expressamente exigirem o plantio de árvores que sejam nativas e endêmicas no respectivo trecho de mata ciliar objeto de restauração. Não há espaço legal ou técnico para o plantio de árvores frutíferas e a transformação da mata ciliar num grande pomar, por uma razão simples: a produção de frutas não melhora a quantidade e a qualidade da água que flui no rio. A água é o produto ofertado pela mata ciliar, não as frutas, como querem os desavisados.

 Com reconhecimento obtido ao vencer o Prêmio Samuel Benchimol edição 2011, na categoria ambiental, o Projeto Ciliar Só-Rio Acre completa em 2015 cinco anos de execução. A sugestiva denominação “Ciliar Só-Rio” faz referência, obviamente, à mata ciliar (que, por sua vez, recebe essa designação em alusão aos cílios dos olhos) – expressando ainda a ideia de simplicidade e de alegria: basta restaurar a cobertura florestal presente na mata ciliar para que o rio Acre volte a sorrir, volte a ser um rio, com suas características ambientais restauradas. A premissa de que a restauração florestal da mata ciliar ampliaria a resiliência do rio – entendendo-se resiliência como a capacidade de o rio assimilar e reverter impactos ambientais – foi apresentada ao CNPq ainda em 2006. Em 2010, a instituição aprovou, por meio de edital, um orçamento de 200 mil reais destinados ao investimento em ações relacionadas à mata ciliar, a serem executadas nos municípios do Acre atravessados pelo rio de mesma designação. De maneira sucinta, o investimento foi direcionado para: 1. Mapear, por meio do emprego de imagens de satélite (atualizadas), uma faixa de dois quilômetros de largura em cada margem, no perímetro em que o rio corta o Estado do Acre; 2. Diagnosticar, por meio de inventário florestal, os tipos de florestas, a fitossociologia e a dinâmica da vegetação presente ao longo daquela faixa de dois quilômetros; 3. Identificar os trechos desmatados de mata ciliar considerados críticos em cada um dos oito municípios cortados pelo rio em território estadual; 4. Calcular, mediante o emprego de um indicador concebido pela equipe de pesquisadores (denominado IVI-Mata Ciliar), as 20 espécies arbóreas e de palmeiras a serem prioritariamente empregadas em futuros projetos de restauração florestal; e 5. Promover uma campanha de conscientização direcionada para a aprovação de uma Lei Municipal da Mata Ciliar, a fim de definir a chamada Largura Técnica da faixa de mata ciliar a ser obedecida em cada município. Durante os primeiros 36 meses de execução do projeto, um total de 12 pesquisadores se envolveu na medição de mais de 4.800 árvores, distribuídas na mata ciliar do rio Acre, entre Assis Brasil, nas proximidades da nascente, até bem perto da foz, em Porto Acre. O estudo dessas formações florestais possibilitou a organização de uma promissora linha de pesquisa, chamada preliminarmente de “Interação água e floresta na Amazônia”, cuja demanda por trabalhos técnicos ainda está por ser definida. Tanto a metodologia adotada pelo projeto – ancorada no tripé mapeamento por satélite, inventário da tipologia florestal e mobilização para aprovação de legislação municipal – quanto as inovações tecnológicas desenvolvidas, baseadas nas formulações matemáticas que resultaram no indicador IVI-Mata Ciliar e no cálculo da Largura Técnica da faixa de mata ciliar, possibilitaram a elaboração e o teste de procedimentos especificamente destinados a estudos sobre matas ciliares. Diante do desempenho alcançado, não há dúvida que esses procedimentos são adequados para a realidade do bioma Amazônia, sendo passíveis de ser adotados, com algumas modificações, em outras localidades. A experiência do Ciliar Só-Rio já foi reproduzida no igarapé Batista (que corta a cidade de Rio Branco), no igarapé Santa Rosa (que nasce e morre no município de Xapuri), e também no Purus, na área de influência da cabeceira desse rio. Os resultados são reveladores de uma realidade na qual a política pública pode e deve intervir. * Professor Associado da Universidade Federal do Acre, engenheiro florestal, especialista em Manejo Florestal e mestre em Política Florestal pela Universidade Federal do Paraná, e doutor em Desenvolvimento Sustentável pela Universidade de Brasília.