segunda-feira, 2 de agosto de 2021

Política ambiental não é para amadores

 Ecio Rodrigues

No Brasil, os mandatários eleitos para o Executivo (em esfera municipal, estadual e federal) costumam supor, inadvertidamente, ao montar seus governos, que a gestão da pasta ambiental não exige formação especializada.

É provável que o equívoco tenha origem em reivindicações do próprio movimento ambientalista, que ainda hoje considera que o cargo de analista ambiental pode ser exercido por qualquer profissional de nível superior.

Não à toa, concursos realizados por Ibama e ICMBio (para ficar apenas na alçada federal) não exigem graduação em cursos correlatos à área do meio ambiente, tais como engenharia florestal e biologia.

Por consequência, e mesmo passando por um período preparatório dispendioso, os aprovados, de maneira geral, não têm a qualificação necessária para atuar no diagnóstico dos impactos ambientais e na elaboração de pareceres técnicos complexos.

Nada mais paradoxal que a deficiência técnica que se constata na atuação dos órgãos ambientais na Amazônia.

É fato que a engenharia florestal habilita o profissional para o manejo da biodiversidade florestal. Também é fato que, na Amazônia, mais da metade das atribuições dos órgãos ambientais está relacionada ao tema das florestas.

Contudo, pode-se dizer – sem querer ser preciso – que de cada 10 técnicos de nível superior, no máximo 2 são engenheiros florestais, sendo que os 8 restantes não são qualificados para atender à demanda do órgão, já que o concurso que prestaram não exigiu essa capacitação.

No caso dos analistas do ICMBio, instituto responsável pela gestão de reservas extrativistas e parques nacionais, é imprescindível que possuam noções mínimas de política ambiental e, por conseguinte, logrem discernir as linhas conceituais que permeiam o assunto, a saber, conservacionismo e preservacionismo.

Afinal, as duas vertentes estão no centro dos preceitos discutidos e estabelecidos no âmbito do Acordo de Paris, o mais amplo e mais sólido pacto ambiental já celebrado pelos países associados à ONU.

A título de esclarecimento, destaque-se que os adeptos do preservacionismo defendem a criação de unidades de conservação de proteção integral, onde não é permitida a presença humana, na condição de principal mecanismo para a obtenção da sustentabilidade no crescimento econômico da Amazônia.

Na visão preservacionista, a segregação de áreas de proteção integral contrabalançaria os impactos observados no restante do território – decorrentes da substituição da biodiversidade florestal por áreas de cultivo/pastagem – e asseguraria um suposto equilíbrio ecológico.

Para os adeptos do conservacionismo, por outro lado, a sustentabilidade só será alcançada mediante o manejo e a inserção da biodiversidade no sistema econômico – não sendo aceitável, portanto, a conversão do ecossistema florestal em pasto.

Dessa forma, como proposta adequada para a conquista da sustentabilidade, defendem a criação de unidades de conservação de uso sustentável, como reservas extrativistas.

Guardando afinidade com um ou outro pensamento, obras clássicas estudadas por técnicos e pesquisadores discutem o desenvolvimento sustentável abordando a relação entre crescimento demográfico/oferta de alimentos/biodiversidade florestal.

Complementa a formação na área ambiental conhecimento básico em torno da questão das desigualdades regionais, sobretudo as alusivas aos níveis de consumo dos países do Norte e do Sul, e que respaldaram os termos convencionados no Acordo de Paris.

Por fim, os analistas do ICMBio devem forçosamente saber distinguir os instrumentos de gestão ambiental, tanto os inseridos no princípio do poluidor/pagador quanto os inerentes ao princípio do comando/controle – tendo em vista que esses instrumentos são referência para a execução da Política Nacional de Meio Ambiente.

Muitos preferem politizar o recorrente fracasso em zerar o desmatamento na Amazônia, mas uma coisa é certa: não é empreitada para amadores.

 

*Professor Associado da Universidade Federal do Acre, engenheiro florestal, mestre em Política Florestal pela Universidade Federal do Paraná e doutor em Desenvolvimento Sustentável pela Universidade de Brasília.

 

 

segunda-feira, 12 de julho de 2021

Moratória das queimadas renovada em 2021

 * Ecio Rodrigues

 A proibição do licenciamento de queimadas por um prazo determinado – a chamada “moratória das queimadas” – foi adotada pela primeira vez no país no final da década de 1990. Desde então, essa medida vem sendo repetida por diversos governos e com eficiência mais que comprovada.

Não foi diferente com o atual. Apesar de se mostrar avesso ao monitoramento e controle ambiental, tendo até cogitado a extinção do MMA (Ministério do Meio Ambiente), o governo que chegou ao Planalto em 2019, refém de pressões nacionais e internacionais, vem adotando a moratória desde o primeiro ano de gestão.

Com efeito, já em 2019, e mesmo com reiteradas manifestações de teimosia e despreparo por parte dos gestores que assumiram a pasta ambiental, o governo foi obrigado, temendo especialmente a reação de investidores estrangeiros, a decretar sua primeira moratória – mas de maneira bem tímida, apenas em agosto e pelo curto prazo de 60 dias.

Diante da enxurrada de críticas recebidas e da gritaria em torno da manifesta inépcia do MMA para tratar da Amazônia, em 2020, acertadamente, a providência foi adotada mais cedo, no mês de julho, e pelo prazo de 120 dias.

Naquele momento, o tópico relacionado às queimadas e desmatamento passou à alçada dos militares: sob o comando do general vice-presidente, a proibição temporária do uso do fogo se fez valer na realidade amazônica.

Agora, em 2021, a moratória foi aplicada novamente, tendo entrado em vigor em 29 de junho – ou seja, bem no início do verão amazônico – e por iguais 120 dias.

Não é preciso pensar muito para concluir que – considerando a imposição de moratória das queimadas de maneira recorrente desde a edição do Decreto 2.661/1998, que regulamenta o emprego do fogo na agricultura – é imperiosa uma discussão mais aprofundada quanto à indispensabilidade de abolir de vez essa nociva pratica.

Primeiro, importa observar que a moratória se mostra norma de eficiência comprovada principalmente por duas razões: otimização da fiscalização e enquadramento do produtor que emprega o pernicioso método da queimada.

A moratória otimiza o pesado e caríssimo aparato fiscalizatório porque reduz sensivelmente as operações e o número de viagens perdidas dos fiscais.

Ocorre que, nos termos da normatização vigente, são muitas as hipóteses de licenciamento do uso do fogo, variando de acordo com o tipo de propriedade e de produtor. Desse modo, por conta da dificuldade em distinguir o que pode ou não ser queimado e quando, por um lado, muitas ocorrências deixam de ser fiscalizadas e, por outro, muitas viagens são perdidas.

Sob poucas exceções (algumas desnecessárias), a moratória suspende as queimadas de forma geral. Portanto, assumindo que onde há fumaça há fogo, a fiscalização, servindo-se de tecnologias de geoprocessamento que fornecem imagens de satélite em tempo real, tem muito mais eficácia na identificação e autuação das situações irregulares.

O enquadramento do produtor, por seu turno, decorre da mensagem transmitida pela moratória – a saber, tolerância-zero em relação às queimadas.

Cabe aqui um esclarecimento. Tal como a adubação, a queimada é uma técnica agrícola. Portanto, deve ser encarada e confrontada como decisão de investimento, ou seja, um procedimento no qual o produtor investe para aumentar seu lucro.

Significa dizer que ele tem alternativas; todavia, opta pela primitiva prática porque, a despeito dos prejuízos ambientais, sociais e econômicos causados pelas queimadas, para o produtor, sai financeiramente mais barato. 

O batido argumento de que o produtor precisa queimar para não morrer de fome – se antes já era questionável – há muito tempo perdeu totalmente o sentido.

A realidade objetiva e os resultados alcançados pelas moratórias demonstram que se o expediente for adotado mais cedo, em maio ou abril de cada ano, e vigorar por prazo maior, de 150 ou 180 dias, o caminho para erradicar as queimadas na Amazônia estará trilhado.

Enfim, embora o ideal de zerar as queimadas ainda se mostre inalcançável, ninguém dúvida do sucesso da moratória como medida de contenção.

 

*Professor Associado da Universidade Federal do Acre, engenheiro florestal, especialista em Manejo Florestal e mestre em Política Florestal pela Universidade Federal do Paraná, e doutor em Desenvolvimento Sustentável pela Universidade de Brasília.

segunda-feira, 21 de junho de 2021

Uso múltiplo da biodiversidade florestal é a chave para o sucesso da Bioeconomia na Amazônia

 * Ecio Rodrigues

Imagine um almoxarifado que dispõe de mais de 50 produtos (a maioria perecível) em estoques reduzidos que duram cerca de 3 meses, cada um atendendo a um determinado nicho de mercado e sendo comercializado sob valor atrativo.

É mais ou menos assim que funciona a economia da biodiversidade florestal da Amazônia.

Sem embargo, conquanto inúmeras pesquisas tenham comprovado o valor econômico estratégico desse almoxarifado, excetuando-se a indústria madeireira, a região ainda não conta com empreendimentos bem sucedidos e em funcionamento voltados para a exploração da biodiversidade florestal.

Essa circunstância, pode-se dizer, perdura desde o final da Segunda Guerra Mundial, quando o principal produto da biodiversidade florestal amazônica, a borracha, foi praticamente eliminado do mercado de pneus.

Administrar esse complexo almoxarifado exige grande capacidade técnica. A boa notícia é que já foi desenvolvida tecnologia apropriada e há disponibilidade de engenheiros formados na própria região – o que permite o gerenciamento desse patrimônio, de maneira a gerar renda e emprego permanentemente.

A noção de uso múltiplo da biodiversidade é recente. Até a segunda metade da década de 1980, a ideia de uso múltiplo se restringia às diversas possibilidades de beneficiamento da madeira.

Naquela época, a engenharia florestal amazônica ainda não era capaz de “ver a floresta que existe além das árvores”, para citar um provérbio inglês comumente usado em macroeconomia.

A versão contemporânea do uso múltiplo, aplicado à biodiversidade florestal, foi formulada mais acentuadamente no Acre, onde um contingente expressivo de extrativistas, ou manejadores florestais, até hoje obtém renda com a venda de castanha, açaí, jarina e mesmo borracha.

É possível, inclusive, determinar horizontes temporais distintos para a evolução da tecnologia de uso múltiplo. Até 1987, a extração de borracha e castanha, apesar de praticada do mesmo modo havia mais de um século, ainda era a base da economia no estado.

Com efeito, os dois produtos representavam a maior parcela do ICMS arrecadado no setor primário. A exploração de um e outro foi considerada, pelo movimento ambientalista, uma atividade adequada do ponto de vista ecológico, uma vez que não causava danos à floresta.

Por isso, os ambientalistas apoiaram os seringueiros na reivindicação pela criação de reservas extrativistas, sendo que a partir daí mais de 2 milhões de hectares foram destinados a essa finalidade em território estadual.

Já mais para o final dos anos 80, a industrialização da castanha para exportação e a diversificação da borracha eram os desafios. Quantidade significativa de recursos públicos foram investidos em tecnologia e qualificação do produtor.

Todavia, a borracha quase sumiu das estatísticas de produção amazônica, e a culpa já não era mais dos asiáticos – como foi em 1911, o que inflamou nossos brios nacionalistas, diante da falácia da biopirataria –, mas, sim, dos paulistas, que vêm batendo recordes de produção anual desde 1993.

Por seu turno, a castanha não deslanchou por questões que vão da mera fragilidade gerencial a problemas complexos, como a inelasticidade do preço internacional.

A falência da base produtiva amparada no binômio borracha/castanha forçou a busca por outros produtos da biodiversidade florestal.

A visão acerca do potencial estratégico da Amazônia ganhou força nesse período. A partir do início da década de 1990, a biodiversidade florestal passou a ser enxergada de forma holística, ou seja, como um todo – evidenciando-se a capacidade da floresta para ofertar um leque variado de produtos e de serviços ambientais, estes relacionados principalmente ao sequestro de carbono e à produção de água.

Resumindo, o uso múltiplo pode ser explicado como a possibilidade de manejar a biodiversidade para obter riqueza de maneira perene, sem comprometer as relações ecológicas que ocorrem no interior da floresta.

Chamou-se, então, de manejo florestal de uso múltiplo essa atividade-fim da engenharia florestal amazônica, que permite administrar adequada e satisfatoriamente o almoxarifado da biodiversidade florestal, viabilizando a vocação produtiva da região.

Mas a sustentabilidade do uso múltiplo só será alcançada quando os produtores lograrem obter retorno financeiro superior ao auferido com a pecuária extensiva de gado. Enquanto a criação de boi for mais vantajosa financeiramente, o produtor será atraído para essa atividade.

Enfim, não há alternativa. A bioeconomia da Amazônia precisa se afastar da pecuária extensiva e promover o uso múltiplo da biodiversidade florestal.

 

*Professor Associado da Universidade Federal do Acre, engenheiro florestal, especialista em Manejo Florestal e mestre em Política Florestal pela Universidade Federal do Paraná, e doutor em Desenvolvimento Sustentável pela Universidade de Brasília.

 

 

segunda-feira, 14 de junho de 2021

Seca no rio Acre não será resolvida nem por Depasa nem por Saerb

 * Ecio Rodrigues

Há algumas semanas a imprensa noticiou que o abastecimento d’água nas cidades que dependem da vazão no rio Acre estava em situação de risco de racionamento.

Trata-se de um universo de consumidores que representa quase 70% da população do estado, concentrando-se nos oito municípios localizados ao longo da bacia hidrográfica.

Embora as informações disponíveis não sejam de fácil interpretação, pode-se afirmar com boa dose de certeza que o cruzamento da rodovia BR 364 com o rio Acre define, no território estadual, a região onde a pressão pelo desmatamento acontece com mais intensidade há mais de 30 anos, em consequência da expansão da pecuária extensiva de gado.

Enquanto isso, nesse longo interstício de três décadas, a administração dos serviços de captação, tratamento e distribuição de água em Rio Branco passou da empresa estadual Sanacre para a municipal Saerb, depois para a estadual Depasa e, agora, voltou para a Saerb.

Essa alternância se deu por conta de dificuldades de gerenciamento, e sempre no propósito de superar tanto limitações de ordem financeira, já que o sistema há muito tempo se tornou deficitário, quanto entraves técnico-administrativos, já que o serviço sempre foi prestado à população de maneira falha e ineficaz.

 A intenção, portanto, era tornar o serviço eficiente e superavitário, mas, a despeito das idas e vindas, esse objetivo até hoje não foi alcançado.

Na verdade, a experiência demonstra (e essa constatação não se aplica apenas a Rio Branco, mas à quase totalidade dos municípios brasileiros) que a gestão pública não consegue entregar um serviço de qualidade, tampouco obter eficiência financeira, causando prejuízos irreparáveis à sociedade. Não à toa, foi promulgado recentemente o marco legal do saneamento, que abriu caminho para a venda das empresas estatais.

Sem embargo, deixando de lado tais questões, uma coisa é certa: o desequilíbrio de vazão no rio Acre requer medidas urgentes.

Não adianta continuar fazendo alarde em torno da seca do rio no verão e da alagação, no inverno, se o ponto-chave do problema não for atacado pela política pública – o que, por sua vez, demanda investimento considerável, para o qual as frágeis economias locais não dispõem de recursos.

Para que a vazão volte a ter equilíbrio, é necessário promover a revitalização da bacia hidrográfica, zerando o desmatamento ali incidente e realizando restauração florestal nos trechos críticos de mata ciliar.

Não se olvida dos impactos ocasionados ao regime hídrico pelas alterações climáticas decorrentes do aquecimento global, que têm dimensão planetária e recebem a vergonhosa contribuição do desmatamento anual da Amazônia; porém, no plano da bacia hidrográfica, é possível fazer o rio retornar aos padrões de equilíbrio de vazão observados antes da retirada da floresta.

Como se sabe, a navegação de batelões de alto calado (acima de 2 metros) era corriqueira nas águas do rio Acre, pelo menos até o final da década de 1950; contudo, hoje em dia, em 70% do rio o leito não permite esse tipo de embarcação. Isso é fato.

Estudos apontam um acentuado assoreamento decorrente do desmatamento – e não apenas do desmatamento que ocorre na mata ciliar, que já perdeu metade de sua cobertura florestal, mas numa área bem maior, que sofre influência da bacia hidrográfica.

Por outro lado, experiências bem sucedidas comprovam que a remuneração do produtor pelo serviço de manejar a biodiversidade florestal traz excelentes resultados, no sentido de reverter a tendência de degradação da mata ciliar – devendo, pois, ser promovida e priorizada.

Com efeito, o produtor pode manejar essa floresta especial, a fim de melhorar a qualidade e a quantidade da água que vai abastecer a população urbana. Esse serviço deve ser remunerado pela empresa que capta, trata e leva a água até as residências e empresas.

Forçoso perceber que nem Sanacre, nem Depasa, nem Saerb, nem qualquer outra estatal vão dar conta dessa empreitada. O processo de assoreamento vai persistir e o rio Acre, continuar secando.

 

*Professor Associado da Universidade Federal do Acre, engenheiro florestal, especialista em Manejo Florestal e mestre em Política Florestal pela Universidade Federal do Paraná, e doutor em Desenvolvimento Sustentável pela Universidade de Brasília.

terça-feira, 8 de junho de 2021

Biodiversidade florestal da Amazônia, serviços ecossistêmicos e o preço

*Ecio Rodrigues

Ao vociferar que os países ricos devem pagar para não desmatarmos a Amazônia, o governo brasileiro, além de se rebaixar ao nível de um chantagista ordinário, erra na estratégia, desconsiderando o potencial econômico da biodiversidade florestal da região.

Por óbvio, a chave da questão não reside no pagamento – já que essas nações há muito tempo se dispõem a nos financiar, a fim de que cumpramos nossa responsabilidade perante a humanidade –, mas sim no que os tributaristas chamam de “efeito gerador”.

Nenhum país, por mais boa vontade que tenha, aceitará pagar quando o Brasil evidencia incapacidade para honrar os compromissos assumidos perante um pacto civilizatório destinado a evitar o aquecimento do planeta, como é o caso do Acordo de Paris, celebrado em 2015 por 195 países associados à ONU.

Entretanto, certamente todos os países anuirão em remunerar os serviços prestados pela biodiversidade florestal da Amazônia na redução do estoque de carbono na atmosfera; conservação da fauna e da flora; qualidade do ar e da água etc. – os chamados serviços ecossistêmicos.

O termo foi cunhado no âmbito da Convenção da Diversidade Biológica, ou simplesmente CDB, assinada durante a Rio 92 – diante da constatação de que a valoração de ecossistemas era inadiável, demandando a concepção de metodologia apropriada.

Ocorre que, longe de atrapalhar o crescimento da economia, a existência de ativos ambientais em países menos industrializados poderia funcionar como expressiva fonte de receitas.

Dessa forma, a partir de 1992 os países passaram a desenvolver métodos para estabelecer preço aos serviços ecossistêmicos fornecidos por cada hectare de biodiversidade florestal – sendo o surgimento do mercado de carbono um dos resultados desse esforço.

Por meio do Ipea (Instituto de Pesquisas Econômicas Aplicadas) e de toda a rede de universidades federais, o Brasil avançou muito no assunto, produzindo considerável lastro teórico sobre o tema.

Vieram da teoria econômica os rudimentos do método desenvolvido para calcular o preço do serviço ecossistêmico oferecido pela floresta na Amazônia, que foi baseado no tradicional custo de oportunidade da terra.

Grosso modo, trata-se de oferecer ao produtor que maneja um hectare de biodiversidade florestal uma compensação em dinheiro equivalente ao que ele embolsaria se desmatasse a terra para o uso agropecuário.

Fácil perceber que o cálculo se funda numa premissa bastante questionável – pela qual o produtor tem o direito de desmatar e portanto deve ser recompensado para abrir mão desse direito –, quando o paradigma deveria outro, a saber, remunerar o detentor de áreas de florestas pelos serviços de produção e purificação de água e ar, manutenção da diversidade biológica e do equilíbrio climático (citando apenas os serviços ambientais mais corriqueiros).

Além disso, esse método se mostrou complexo e impreciso, chegando a determinar um valor muito elevado para a remuneração a ser paga, entre 45 e 75 dólares por hectare, de acordo com a produtividade observada em cada tipo de solo.

Tal valor teve como referência os lucros obtidos com a produção de soja, sem dúvida o maior custo de oportunidade da terra na Amazônia, contudo, é uma cifra bem superior ao custo de oportunidade representado pela criação extensiva de gado, atividade que ocupa no mínimo 70% da área desmatada em toda a região e bem mais que isso nos territórios do Acre, Amapá, Roraima e Amazonas.

Mas, deixando as controvérsias metodológicas à parte, o ponto aqui abordado é a estratégia empregada pelos gestores na negociação com os países doadores para lograr alcançar o que o mundo espera dos brasileiros, o fim de todo e qualquer desmatamento na floresta amazônica.

Ao invés de aproveitar a oportunidade para discutir o preço dos serviços ecossistêmicos e obter recursos necessários à remuneração dos produtores, o governo optou por fazer chantagem rasteira – e, como sempre, de uma maneira estúpida, demonstrando indesculpável desconhecimento a respeito da Amazônia.

No final das contas, a própria incapacidade do Brasil para coibir o desmatamento (de longe a maior ameaça à biodiversidade florestal) foi usada como pretexto na exigência do pagamento. Em outras palavras, o país tenta usar em seu benefício a própria torpeza, algo absolutamente antiético, que jamais irá sensibilizar ou impressionar a comunidade internacional.

Negociações em andamento para a Conferência da ONU de Glasgow, que se realizará em novembro próximo, mostram que o momento é oportuno à apresentação de uma estratégia propositiva para zerar o desmatamento, o ilegal e o legalizado.

E o caminho é simples: o serviço ecossistêmico prestado pela biodiversidade florestal da Amazônia tem preço.

                                  

*Professor Associado da Universidade Federal do Acre, engenheiro florestal, especialista em Manejo Florestal e mestre em Política Florestal pela Universidade Federal do Paraná, e doutor em Desenvolvimento Sustentável pela Universidade de Brasília.

 

segunda-feira, 31 de maio de 2021

Populações tradicionais e a biodiversidade florestal na Amazônia

* Ecio Rodrigues

Sempre que houver uma população tradicional na Amazônia e um recurso da biodiversidade florestal sendo explorado, a criação de uma reserva extrativista será a melhor saída.

Duas razões reforçam a tese da adequação da reserva extrativista à condição de reguladora do acesso das comunidades de produtores, ou de manejadores, a algum produto oriundo da biodiversidade florestal na região.

A primeira delas pode ser resumida como segurança jurídica fundiária.

Ocorre que, na Amazônia, de forma geral, as comunidades extrativistas continuaram a habitar os antigos seringais, onde permaneceram nas chamadas “colocações”, suas unidades produtivas, das quais detinham tão somente a posse.

Inserida no Snuc (Sistema Nacional de Unidades de Conservação), a reserva extrativista é categoria de unidade de conservação pertencente ao grupo do uso sustentável e sua criação depende da desapropriação da área de floresta habitada pelos posseiros, nos casos em que a terra tem dono – ou seja, dispõe de matrícula própria junto ao cartório imobiliário em nome do respectivo proprietário.

Uma vez criada a reserva extrativista, a situação do posseiro é regularizada por meio da celebração de contrato de concessão de direito real de uso com o ente instituidor (União, estado ou município) – o que confere ao produtor e seus descendentes a necessária segurança jurídica para viver e obter renda na colocação, desde que observadas as exigências impostas, tais como não desmatar e não vender.  

A segunda razão que leva a reserva extrativista a ser considerada a melhor opção para viabilizar a exploração da biodiversidade florestal pelas populações tradicionais na Amazônia diz respeito à sustentabilidade dessa produção.  

Como se sabe, no final da década de 1980 a expansão da pecuária extensiva sobre a floresta se deparou com um obstáculo: os seringueiros remanescentes dos ciclos econômicos da borracha que teimavam em permanecer no interior do ecossistema florestal extraindo um leque variado de produtos – muito embora o extrativismo, como atividade produtiva, tivesse sido considerado oficialmente “extinto” pelo Estado brasileiro.  

Diante da ameaça representada pelo desmatamento, o uso tradicional da biodiversidade florestal, por meio do modo extrativista de produção, foi alçado à condição de alternativa adequada para a ocupação produtiva da região.

Tal premissa veio da constatação de que, ao exercer sua atividade durante mais de cem anos para a extração em média e larga escala de diversos produtos da biodiversidade, as populações tradicionais, incluindo seringueiros, castanheiros, caucheiros, balateiros, carnaubeiras, quebradeiras de coco, entre outras, garantiram a conservação da floresta.

Essa constatação, comprovada pelas imagens de satélite que permitiram contrapor as áreas correspondentes aos antigos seringais e colocações, cobertas por florestas, ao desmatamento que ocorria ao redor, justificou a multiplicação das reservas extrativistas na Amazônia e sua exportação para outros biomas, inclusive o marinho.

Atualmente, na região, um território maior que o do Acre é ocupado por reservas extrativistas, em cujo perímetro o único meio de que dispõe o produtor para obter renda de maneira legalizada, conforme previsto no Snuc, é o manejo da biodiversidade florestal.

Contudo, se por um lado a sustentabilidade dessa produção é inquestionável, por outro, pairam dúvidas acerca do potencial da biodiversidade para gerar emprego e renda no mesmo nível que o assegurado pela atividade que predomina na realidade amazônica e que é a grande responsável pelo avanço do desmatamento – a criação extensiva de gado.

Experiências pioneiras e pontuais realizadas no Acre – para as quais não se deu ainda a devida atenção – demonstraram que mediante o emprego de uma tecnologia de manejo já existente e que faculta o uso múltiplo da biodiversidade florestal é possível garantir níveis satisfatórios de renda líquida tanto no plano da produção comunitária quanto em escala empresarial.

No caso específico das populações tradicionais, o propósito de melhoria econômica associado à imposição da produção florestal como único meio de renda assegura a permanência do produtor na colocação (evitando o êxodo), ao tempo em que promove a conservação da floresta (evitando o desmatamento).

Enfim, ao manejar a biodiversidade florestal as populações tradicionais contribuem para zerar o desmatamento na Amazônia.

 

*Professor Associado da Universidade Federal do Acre, engenheiro florestal, especialista em Manejo Florestal e mestre em Política Florestal pela Universidade Federal do Paraná, e doutor em Desenvolvimento Sustentável pela Universidade de Brasília.

segunda-feira, 24 de maio de 2021

Manejo comunitário da biodiversidade e desmatamento zero na Amazônia

 * Ecio Rodrigues

Poucos reconhecem que a tecnologia de manejo florestal comunitário foi concebida e detalhada pelos engenheiros florestais do Acre e, o principal, que o propósito foi levar a exploração de madeira até as colocações dos seringueiros.

O desenvolvimento da tecnologia, bem como a escolha da madeira como produto prioritário e a demarcação da unidade produtiva do extrativista (a dita “colocação”, situada no interior do ecossistema florestal), na condição de referência, foram decisões motivadas pela criação dos primeiros Projetos de Assentamentos Extrativistas, PAE.

Instituídos e geridos pelo Incra em 1988, os 3 primeiros PAEs foram criados no Acre (Cachoeira, Porto Dias e São Luís do Remanso), para o assentamento dos próprios extrativistas que já residiam naqueles seringais, requerendo o desenvolvimento de uma alternativa produtiva que possibilitasse gerar renda sem derrubar a floresta.

Estava, por óbvio, na exploração comercial e sustentável da biodiversidade florestal a saída econômica para as áreas de florestas ocupadas por pequenos produtores – que logo ganhariam expressão nacional com o apoio do movimento ambientalista ao modelo das reservas extrativistas.

As reservas extrativistas surgiram no rastro dos PAEs (mas sob a jurisdição do Ministério do Meio Ambiente), destinando-se especificamente a garantir, por um lado, a regularização fundiária das posses remanescentes nos antigos seringais e, por outro, a viabilização da produção florestal no perímetro da resex, como forma de combater o desmatamento da floresta na Amazônia.

Todavia, naquela época, início da década de 1990, o entendimento de que era indispensável a concepção de uma tecnologia que facultasse a produção sustentável de madeira pelos produtores residentes em PAEs e reservas extrativistas, no intuito de lhes assegurar renda superior à gerada com a criação extensiva de boi, não era perfilhado pelos analistas do Ibama e nem mesmo por parcela expressiva dos engenheiros florestais.

Entre os motivos que levaram os produtores, por meio de suas entidades representativas, a apostar, mesmo sob elevado risco econômico, na aplicação da tecnologia do manejo florestal comunitário para produção de madeira, podem-se citar:

a) o elevado impacto social, decorrente do padrão de ocupação baseado na expansão do desmatamento, provocado sobre as comunidades extrativistas que habitavam a floresta;

b) a redemocratização do país e o consequente processo de mobilização e organização da sociedade civil na Amazônia;

c) a imprescindível e determinante oferta de recurso financeiro a fundo perdido, oriunda da cooperação internacional e destinada exclusivamente ao apoio às comunidades para o manejo das florestas.

Ocorre que a aquisição de terras, por parte de pecuaristas sulistas, na Amazônia e no Acre, em particular, foi intensificada na década de 1970, excluindo do sistema produtivo o extrativista, que teria como destino os programas de reforma agrária.

Com sua condição econômica debilitada pelos baixos preços da borracha e sofrendo as nefastas consequências do desmatamento, as comunidades extrativistas passaram a se organizar em busca de alternativas produtivas.

Surgiram associações, sindicatos, cooperativas, centrais de produção etc., processo que culminou com a criação do Conselho Nacional dos Seringueiros em 1985.

Organizações não governamentais apoiaram os extrativistas na complicada relação com o Estado e nos complexos procedimentos de obtenção de financiamento para projetos de alto risco. Por fim, a oferta de recurso financeiro a fundo perdido se mostrou pequena frente ao crescimento exponencial da demanda dos produtores.

Em função de sua característica de inovação, a tecnologia do manejo comunitário teve que superar empecilhos normativos, mercadológicos, culturais e institucionais – exigindo disposição pra tanto.

Atividades produtivas no meio florestal são excludentes entre si. O produtor vai se dedicar ao manejo comunitário da biodiversidade florestal, desde que essa atividade lhe proporcione os mesmos níveis de renda fornecidos pela pecuária extensiva de gado.

Ou seja, para zerar o desmatamento, a biodiversidade florestal da Amazônia deve gerar os ganhos que o produtor auferiria se criasse bois soltos no pasto.

 

*Professor Associado da Universidade Federal do Acre, engenheiro florestal, especialista em Manejo Florestal e mestre em Política Florestal pela Universidade Federal do Paraná, e doutor em Desenvolvimento Sustentável pela Universidade de Brasília.